domingo, 9 de maio de 2010

"Passeio Socrático"


Autor: Frei Betto


Ao viajar pelo Oriente mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia,
do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos e em paz nos
seus mantos cor de açafrão.

Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de
espera cheia de executivos com telefones celulares,
preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza,
já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia
um outro café, todos comiam vorazmente. Aquilo me fez refletir: 'Qual dos
dois modelos produz felicidade?

Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei: 'Não
foi à aula?' Ela respondeu: 'Não, tenho aula à tarde'.
Comemorei: 'Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir até mais
tarde'. 'Não', retrucou ela, 'tenho tanta coisa de manhã...'.
'Que tanta coisa?', perguntei. 'Aulas de inglês, de balé, de pintura,
piscina', e começou a elencar seu programa de garota robotizada. Fiquei
pensando: 'Que pena, a Daniela não disse: 'Tenho aula de meditação!'

Estamos construindo super-homens e super-mulheres, totalmente equipados, mas
emocionalmente infantilizados.

Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis
livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de
ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me
preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo,
vamos todos morrer esbeltos: 'Como estava o defunto?'. 'Olha, uma maravilha,
não tinha uma celulite!' Mas como fica a questão da subjetividade? Da
espiritualidade? Da ociosidade amorosa?

Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Trancado em seu quarto, em
Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma
preocupação de conhecer o seu vizi-nho de prédio ou de quadra!

Tudo é virtual. Somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos
virtuais. E somos também eticamente virtuais...

A palavra hoje é 'entretenimento'. Domingo, então, é o dia nacional da
imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se
apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela. Como a
publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade
é o resultado da soma de prazeres: 'Se tomar este refrigerante, calçar este
tênis, usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!' O problema é
que, em geral, não se chega! Quem cede desenvolve de tal maneira o desejo,
que acaba precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, aumenta a
neurose.

O grande desafio é começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse
condicionamento globalizante, neoliberal, consumista.
Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental, três
requisitos são indispensáveis: amizades, auto-estima, ausência de estresse.

Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Na Idade Média, as
cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil,
constrói-se um shopping center. É curioso: a maioria dos shoppings centers
tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de
qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingo.

E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de
rua, sujeira pelas calçadas... Entra-se naqueles claustros ao som do
gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se
os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de
consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista,
sente-se no reino dos céus. Se deve passar cheque pré-datado, pagar a
crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode
comprar, certamente vai se sentir no inferno... Felizmente, terminam todos
na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o
mesmo hambúrguer do Mc Donald's...

Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas:
'Estou apenas fazendo um passeio socrático. Diante de seus olhares
espantados, explico: 'Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar
a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como
vocês o assediavam, ele respondia: "Estou apenas observando quanta coisa
existe de que não preciso para ser feliz!"
.

Frei Betto

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