quarta-feira, 27 de outubro de 2010

"Uma Carta ao Ricardo Noblat (Colunista do Jornal O Globo)"

Uma carta ao Noblat


Deus me livre de que o tempo me corroa a humildade e me faça querer ser dono da verdade, destes que não ouvem com o coração e não escrevem com alma.

E que me permita um dia, quando os cabelos – se restarem – ficarem brancos, escrever como o aposentado Carlos Moura, da mineira Além Paraíba, faz hoje numa carta aberta ao jornalista Ricardo Noblat, respondendo a uma agressão insólita e desnecessária que fez, ontem, em seu blog, a Lula, dizendo que lhe falta, desde que decidiu eleger Dilma, “caráter, nobreza de ânimo, sentimento, generosidade”.

A carta de Moura foi publicada no Escrevinhador, de Rodrigo Vianna, e eu a reproduzo aqui:


Noblat


Quem é você para decidir pelo Brasil (e pela História) quem é grande ou quem deixa de ser? Quem lhe deu a procuração? O Globo? A Veja? O Estadão? A Folha?


Apresento-me: sou um brasileiro. Não sou do PT, nunca fui. Isso ajuda, porque do contrário você me desclassificaria, jogando-me na lata de lixo como uma bolinha de papel. Sou de sua geração. Nossa diferença é que minha educação formal foi pífia, a sua acadêmica. Não pude sequer estudar num dos melhores colégios secundários que o Brasil tinha na época (o Colégio de Cataguases, MG, onde eu morava) porque era só para ricos. Nas cidades pequenas, no início dos sessenta, sequer existiam colégios públicos. Frequentar uma universidade, como a Católica de Pernambuco em que você se formou, nem utopia era, era um delírio.


Informo só para deixar claro que entre nós existe uma pedra no meio do caminho. Minha origem é tipicamente “brasileira”, da gente cabralina que nasceu falando empedrado. A sua não. Isto não nos torna piores ou melhores do que ninguém, só nos faz diferentes. A mesma diferença que tem Luis Inácio em relação ao patriciado de anel, abotoadura & mestrado. Patronato que tomou conta da loja desde a época imperial.


O que você e uma vasta geração de serviçais jornalísticos passaram oito anos sem sequer tentar entender é que Lula não pertence à ortodoxia política. Foi o mesmo erro que a esquerda cometeu quando ele apareceu como líder sindical. Vamos dizer que esta equipe furiosa, sustentada por quatro famílias que formam o oligopólio da informação no eixo Rio-S.Paulo – uma delas, a do Globo, controlando também a maior rede de TV do país – não esteja movida pelo rancor. Coisa natural quando um feudo começa a dividir com o resto da nação as malas repletas de cédulas alopradas que a União lhe entrega em forma de publicidade. Daí a ira natural, pois aqui em Minas se diz que homem só briga por duas coisas: barra de saia ou barra de ouro.


O que me espanta é que, movidos pela repulsa, tenham deixado de perceber que o brasileiro não é dançarino de valsa, é passista de samba. O patuá que vocês querem enfiar em Lula é o do negrinho do pastoreio, obrigado a abaixar a cabeça quando ameaçado pelo relho. O sotaque que vocês gostam é o nhém-nhém-nhém grã-fino de FHC, o da simulação, da dissimulação, da bata paramentada por láureas universitárias. Não importa se o conteúdo é grosseiro, inoportuno ou hipócrita (“esqueçam o que eu escrevi”, “ tenho um pé na senzala” “o resultado foi um trabalho de Deus”). O que vale é a forma, o estilo envernizado.


As pessoas com quem converso não falam assim – falam como Lula. Elas também xingam quando são injustiçadas. Elas gritam quando não são ouvidas, esperneiam quando querem lhe tapar a boca. A uma imprensa desacostumada ao direito de resposta e viciada em montar manchetes falsas e armações ilimitadas (seu jornal chegou ao ponto de, há poucos dias, “manchetar” a “queda” de Dilma nas pesquisas, quando ela saiu do primeiro turno com 47% e já entrou no segundo com 53 ) ficou impossível falar com candura. Ao operário no poder vocês exigem a “liturgia” do cargo. Ao togado basta o cinismo.


Se houve erro nas falas de Lula isto não o faz menor, como você disse, imitando o Aécio. Gritos apaixonados durante uma disputa sórdida não diminuem a importância histórica de um governo que fez a maior revolução social de nossa História. E ainda querem que, no final de mandato, o presidente aguente calado a campanha eleitoral mais baixa, desqualificada e mesquinha desde que Collor levou a ex-mulher de Lula à TV.


Sordidez que foi iniciada por um vendaval apócrifo de ultrajes contra Dilma na internet, seguida das subterrâneas ações de Índio da Costa junto a igrejas e da covarde declaração de Monica Serra sobre a “matança de criancinhas”, enfiando o manto de Herodes em Dilma. Esse cambapé de uma candidata a primeira dama – que teve o desplante de viajar ao seu país paramentada de beata de procissão, carregando uma réplica da padroeira só para explorar o drama dos mineiros chilenos no horário eleitoral – passou em branco nos editoriais. Ela é “acadêmica”.


A esta senhora e ao seu marido você deveria também exigir “caráter, nobreza de ânimo, sentimento, generosidade”.


Você não vai “decidir” que Lula ficou menor, não. A História não está sendo mais escrita só por essa súcia de jornais e televisões à qual você pertence. Há centenas de pessoas que, de graça, sem soldos de marinhos, mesquitas, frias ou civitas, estão mostrando ao país o outro lado, a face oculta da lua. Se não houvesse a democracia da internet vocês continuariam ladrando sozinhos nas terras brasileiras, segurando nas rédeas o medo e o silêncio dos carneiros.


Carlos Torres Moura


Além Paraíba-MG

SEÇÃO POLÍTICA: "Professora de José Serra e Dilma, afirma que LULA é um gênio e explica porque vota na Dilma"

Ao longo de décadas, Maria da Conceição Tavares formou gerações de economistas e líderes políticos, incluindo Lula

OBS: REPRODUZO NESTE BLOG O QUE EU CONSIDERO: UMA DAS MELHORES ENTREVISTAS QUE JÁ LI, SOBRETUDO PELA ISENÇÃO DA ENTREVISTADA E TAMBÉM DEVIDO A SUA "LUCIDEZ"(EM ENXERGAR O ÓBVIO). GOSTARIA QUE ELEITORES DE JOSÉ SERRA TIVESSEM A OPORTUNIDADE DE LEREM ESTA ENTREVISTA

Do jornal Público

Maria da Conceição Tavares é daquelas figuras “maiores que a vida”. Aos 80 anos, a fumar ininterruptamente na sua casa do bairro carioca Cosme Velho, tem algo de Indira Gandhi ou Churchill. Voz e riso de trovão, olhar agudo, resposta incisiva. Respeitada em todo o espectro político como economista e pensadora, é uma das grandes conselheiras do PT. Nunca quis ser ministra porque diz tudo o que pensa.

Portuguesa, nascida em Anadia, crescida em Lisboa, filha de um anarquista que alojava refugiados da Guerra Civil de Espanha, veio casada e grávida para o Brasil, aos 21 anos, por causa de Salazar. Desde então, ao longo de 60 anos, formou gerações de economistas e líderes políticos, incluindo Lula.

A senhora deve ser a única pessoa no Brasil que consegue juntar no aniversário dos seus 80 anos….

Os dois candidatos à presidência da República! [ri-se]

… Dilma Rousseff e José Serra.

Mas o clima estava muito bom. Eles nunca se trataram mal, nem nada. Eram pessoas civilizadas, que se tratavam bem. A campanha é que despertou essa trapalhada. A noite [do aniversário, 24 de Abril] correu perfeita. Nem se discutiu política. Foi uma festa.

Eles sempre tiveram boa relação?
Não que sejam amigos pessoais, como eu sou amiga dos dois. Mas sempre tiveram boa relação. O Serra era um sujeito civilizado. Não sei o que deu na cabeça dele agora.

Conhece-o muito bem…

Desde 1968.

… se tivesse de explicar quem é José Serra, o que diria?

Um bom economista. Ambos éramos do PMDB, a frente democrática contra a ditadura. E ele saiu para fundar, com o [Mário] Covas e o Fernando Henrique [Cardoso], o PSDB, uma espécie de ala esquerda. Muita gente não acompanhou isso. Eu, por exemplo, não fui porque não faço muita fé no Fernando Henrique, que sempre foi meio dúbio, trapalhão. O Covas é que era o homem importante. Morreu. E aí… A partir do momento em que Fernando Henrique foi para o poder, o Serra manteve a posição dele como economista contra a política neoliberal.

Porque é que acha o Fernando Henrique “meio dúbio”?

Diz uma coisa para agradar a uns e outra para agradar a outros. Não fazia política, mas era um político na academia. E o Serra não, sempre foi muito “straight”, muito direito.

Confiaria mais no Serra que no Fernando Henrique?

Sem dúvida [ri]. E o primeiro governo [de Fernando Henrique] mostrou isso. Porque aí o Serra foi ministro de Planejamento contra a política neo-liberal do Fernando Henrique. Depois foi um bom ministro da saúde. Não havia nada nele que demonstrasse que ia ter uma mudança assim tão brusca. Mesmo quando foi candidato contra o Lula foi uma campanha normal. Ele sempre respeitou o Lula.

Mas acha que Serra mudou?

Mudou. Por razões de interesse político.

Como é que essa mudança se manifesta?

Na arrogância, na agressão. Ele não era assim.

Mas na segunda volta quem passou ao ataque foi Dilma.

Mas não foi ataque pessoal, xingando ele. Foi atacando o governo anterior [de Fernando Henrique]. E ele não se defendeu.

Depois [a campanha] foi piorando. E agora piorou de vez.


Como vê o incidente em que Serra acusou o PT de ser nazi, ao agredirem-no com um rolo de papel?

Ah, são jovens na rua. Mesmo que sejam pêtistas não tem a ver com o partido em geral. Essa mania de chamar um partido de nazi, acho de maluco, num país democrático como é hoje o Brasil. A gente está extremando o argumento. O Serra está muito agressivo. É verdade que essa deve ser a última oportunidade, mas parece que lhe bateu o desespero.

Mas não acha que Dilma mudou de atitude também, ficou mais agressiva?

Claro. Mas é para responder. Defender a honra dela. Ele diz que ela é mentirosa, que disse isto e depois aquilo. Diz que ela abriga a corrupção, que é dela a culpa da Erenice [Guerra, ex-braço direito de Dilma, acusada de corrupção], que todos os problemas do Brasil são culpa dela. Ela está mais agressiva no tom, inclusive mais assertiva. Mas não está insultando, dizendo que ele é ladrão.
De qualquer maneira, [a campanha] degringolou. Passou a ser um debate agressivo e vazio.


Conheceu Dilma nos anos 80, sua aluna na Unicamp. Como a pode apresentar?

É uma moça que sempre fez política, como o Serra. Fez política nos partidos radicais nos anos 70, ficou presa muitos anos, teve um comportamento fantástico na prisão, é uma mulher de muita coragem, de nervo. Ela não se desmorona à toa.
Em 80 veio para Campinas, para o doutoramento. Era brilhante. Brilhantes, eles são os dois.


Serra e Dilma?

É. Ambos são bons economistas. Isso é que irrita. Podiam estar falando de coisas importantes para o Brasil.

Portanto, em termos de economia, não fica preocupada com nenhum dos dois?

Não, não fico. Quero dizer, com o Serra fico, em termos de política. Porque ele virou muito conservador e é frontalmente contra a política externa do Brasil, essa política de autonomia. Ele não é a favor das relações Sul-Sul. Preferia que a gente mantivesse a relação Norte-Sul, mais estreita com os Estados Unidos, o que acho um erro. E ele é muito fiscalista. Tanto, que o que está dizendo é contraditório. É a favor do corte do gasto público, mas diz que vai dar não sei quantos mil de salário mínimo, e para os aposentados. Está fazendo promessas demagógicas, o que não é nada o estilo dele.


Existe a ideia de que a Dilma é uma construção do Lula, alguém que não tem personalidade própria.

Isso é uma bobagem. O que ela não tem é o conhecimento político do Lula. Mas foi ministra de Minas e Energias, um sector pesado, em plena crise de energia eléctrica — herança da política boba do Fernando Henrique —, e foi Chefe da Casa Civil, uma casa política. E está com ele [Lula] todos os dias. Tem aprendido com ele tudo o que há para aprender sobre o Brasil. É evidente que sem ele não teria chance. O Serra já foi candidato a várias coisas, ela não. Então, o facto de ser apoiada pelo Lula ajuda. Não bastava o PT. O PT não tem peso suficiente para fazê-la ganhar. Quem tem é o Lula, uma figura política como nunca ocorreu no país. Para dizer a verdade, pouco ocorreu no mundo.


No vídeo em que apoia à Dilma diz: não sigam a propaganda das grandes empresas, o Brasil tem de fazer as pazes com o povo, não pode ficar só votando para os 10 ou 20 por cento de cima, e a mulher do povo é a Dilma. Acha que existem dois Brasis, essa faixa de cima que é anti-Lula e o Brasil do povo?

Acho. Tranquilamente.

E isso está a manifestar-se de novo nesta eleição?

De novo. Agora, tem a classe média, que vai para cá ou para lá, conforme a conjuntura.

A classe média que ascendeu nos últimos anos?

A que ascendeu foi a média-baixa. A média-alta, não. E essa é que tem muita raiva do Lula e não vai votar na Dilma.

Nessa faixa média alta, o Lula é frequentemente descrito como um ignorante, ou um populista.

Primeiro, não é populista porque é do povo. Populista seria um cara da elite que estivesse manipulando o povo. Ele ascendeu do povo, e foi sendo feito pelo povo.
Depois, ignorante, coisa nenhuma. O Lula sabe mais do Brasil do que ninguém. E sabe mais de economia aplicada, prática, do que ninguém. Já é candidato desde 1989. Então, na primeira derrota fez o Instituto de Cidadania, uma espécie de ONG, e convidava todos os intelectuais. Eu conhecia-o de vista, mas aí passei a ser assessora dele. Eu, uma série de economistas progressistas, filósofos, sociólogos.

Era uma espécie de academia informal?

Claro. De maneira que ele fez uma “universidade” que durou de 1989 a 2002.

Como “aluno”, como era?

Ah, brilhante, brilhante. Tem uma memória prodigiosa. E quando havia discussão académica e ele percebia que as questões estavam resvalando, não deixava. Ele vai no gume. Tem um sentido de oportunidade muito afiado, uma mente muito lógica. Isso é que é impressionante. Tem um coração popular, uma emoção popular, mas a cabeça dele é totalmente lógica. É dos homens mais inteligentes que conheci. Se não o mais.

Diria que o Lula é talvez o homem mais inteligente que conheceu?

Sem dúvida. E não apenas politicamente. É uma inteligência nata. É um génio do povo. Nós tivemos um génio do povo. Se não, não teria chegado lá. Você acha que alguém vindo de onde ele veio, com as dificuldades que teve, chega a presidente? Não. Ele é um génio do povo, mesmo, e impressiona qualquer um.

A senhora tem uma frase que é: “O Lula é o maior intelectual orgânico do Brasil.”

Os intelectuais como eu são clássicos. E ele é orgânico. Interpreta e representa organicamente o povo brasileiro.

Não tem nada a ver com um Hugo Chávez?

Não, imagina! O Chávez é de origem militar. Ao Chávez é que se podia chamar populista, embora eu o ache mais uma espécie de caudilho ilustrado.

E o Lula não tem nada de caudilho [líder carismático e autoritário]?

Não, que caudilho! Ele jamais faz apelos carismáticos. Ele fala com o povo, ou com quem quer que seja, de igual para igual. Faz piada, faz humor.

É um deles?

É um deles. Mas também quando se encontra com a classe média é como um de nós. Não tem complexo de inferioridade, nem de superioridade.


Não tem ressentimento, é isso?

De nenhuma espécie. E não gosta que fiquem elogiando ele de mais. É muito lúcido. Como a lucidez é uma característica da inteligência analítica, ele tem uma inteligência analítica poderosa. E como é do povo, eu digo que é orgânico.

A senhora escreveu que ele foi quem mais avançou na “republicanização do Brasil”. No sentido de democratização?

É. Porque está dando voz ao povo. A preocupação dele é tornar cidadãos os que estão à margem. E não com palavras, com factos. Indo até eles, dando-lhes direitos, com a preocupação de que as políticas sociais sejam para incorporação.

O Lula, entre as derrotas, fez várias viagens ao Brasil inteiro, chamadas Caravanas da Cidadania. A palavra que escolhe sempre é cidadania. Por isso digo que é republicanização. O que ele quer é que todos os brasileiros tenham cidadania, possam-se expressar, ter direitos. Quer acabar com os dois Brasis, em resumo. Quer fazer disto uma nação.


Quando chegou ao Brasil, o pensamento do antropólogo Darcy Ribeiro foi importante para si, a ideia de construir uma democracia multiracial nos trópicos. O Brasil está mais perto disso?

Está. Nunca julguei que chegasse. Mas agora acho que a democracia está consolidada no Brasil. A coisa multiracial está avançando, porque os direitos dos negros, dos índios, estão sendo reconhecidos. E os dois Brasis estão terminando. Essa nossa vergonha.


Lula é acusado de tentações autoritárias, de se apoderar da máquina do Estado, de se enfurecer com a imprensa. Há toda esta tensão.

Ele ironiza, ridiculariza, o que é outra coisa, porque é muito do estilo popular, rir dos defeitos do adversário.

Mas não há uma tentação autoritária? Quando se fala do inchaço da máquina do Estado…

Que inchaço da máquina do Estado, coisa nenhuma. Nós desmontámos o Estado do Fernando Henrique, que fez uma política neo-liberal durante oito anos, nunca fez concurso público e deixou que todo o Estado ficasse terciarizado, com gente que trabalhava sem contrato, sem carteira assinada. Isso é que inchaço. O Lula faz concurso público, a terciarização está diminuindo, está aumentando o pessoal com carteira assinada. Enfim, estão-se reconhecendo formalmente os direitos trabalhistas. E isto é autoritarismo?
É possível que em alguns cargos de confiança o Lula tenha errado, mas também o Fernando Henrique errou, botou vários em cargos de confiança que nas privatizações se revelaram pessoas sem escrúpulos. Errar em cargo de confiança acontece em qualquer governo. Agora, no Estado, não, porque o Lula fez concurso. Foi por mérito, não para inchar a máquina.

A corrupção foi o problema que prejudicou mais o governo Lula?

Foi o que prejudicou a imagem. Não propriamente dele, que tem 80 por cento de aprovação. Prejudicou os candidatos dele, como está prejudicando Dilma, prejudicou a imagem do governo.
Mas ele tirou, por exemplo, o José Dirceu [protagonista do escândalo Mensalão, em que o PT pagava a deputados uma mesada], de quem era amigo antiquíssimo. Não há nepotismo.

Todos os casos de corrupção declarada, ou objecto de inquérito público, foram demitidos.

Por exemplo, com o Berlusconi, não há dúvida nenhuma de que aquilo é um governo corrupto, porque ele é um corrupto. Agora, ninguém acusou o Lula directamente. Acusaram-no de ter fechado os olhos, mas ele não fechou olho nenhum. Podia ter mantido o José Dirceu, e dizer que era culpa de fulaninho e sicraninho, enfim daqueles que fizeram lá os “mal-feitos”.

Como podia ter mantido a Erenice, não tinha processo contra ela.

Agora, tem pêtistas que não gostaram que o PT não expulsasse esses quadros. Eu fazia parte da tendência chamada refundação. Achava que devíamos dar uma refundada e ter um código de ética mais pesado. O argumento dos outros era que seria injusto expulsar enquanto não ficasse provada a culpa.

Obviamente, não tenho a menor simpatia pelos quadros que foram acusados. Quanto mais não seja por ineficácia política. De um homem da importância de José Dirceu, que foi presidente do partido anos, e deixa o tesoureiro nomeado por ele fazer o que fez, dele é que se pode dizer que como estava preocupado com o poder esqueceu essa parte [ter mão na corrupção]. Ele pode ser acusado disso. O Lula não. Não tinha nada que ver com a máquina do partido. Lançou a Dilma, e depois é que o partido referendou. O Lula sempre teve muita autonomia em relação ao partido. Tanto que o pessoal fala que há o pêtismo e o lulismo.

Acha que há?

Há mesmo. Porque o Lula é maior que o partido. Acha que essa malta pobre que vota nele é pêtista? Coisa nenhuma. São pentecostais, a maior parte não tem partido. Acreditam no Lula. O lulismo é um fenómeno de massas. O pêtismo é um fenómeno orgânico, de um partido de esquerda que foi andando para uma espécie de centro-esquerda, social-democrata, que hoje já não existe na Europa, porque a Europa está decadente.


A Europa está decadente?

Ah, está. Puxa vida. Bota decadência, não é? Até nós.

Até nós?

Nós, portugueses [risos].


Seguimos o exemplo dos outros. O único país que seguiu menos esse exemplo foi a Suécia, que teve um período neo-liberal muito curto. Nós virámos neo-liberais. Não somos social-democratas faz horas. Nem nós, nem a Europa inteira continental. Nem a Inglaterra, nem nada.

O Lula é um social-democrata?

É. Vamos ver: social-democrata é quando você representa organicamente os trabalhadores. Ora, se há social-democrata é o Lula. Jamais foi a favor da luta armada, jamais. Sempre ficava meio chateado entre a discussão dos intelectuais e dos que vinham da igreja. O PT tem três origens: a sindical, que é a dele, a da igreja, católica, e a dos intelectuais revolucionários. Perdiam um tempo danado a discutir e a vontade dele era mandar os padres rezar e os intelectuais para a academia, e não chatearem ele [ri]. Isso ele disse uma vez para mim, rindo: “Você não tem ideia do que era!” Quando eu entrei, [o PT] já estava manso.

Nunca quis ser ministra?

Não. Não tenho temperamento para ser executiva. Fui deputada porque me pediram.

O Lula nunca a convidou?

Não. Ele conhece-me, sabe que eu sou pêlo no vento. Eu sou muito mais agressiva do que a Dilma, muito mais. Ela consegue disfarçar a raiva dela, eu não. Quando fico com raiva, fico. Digo na cara das pessoas o que acho. Eu não seria uma boa ministra. Sou uma boa assessora.

Porque diz o que pensa.

Isso. O que é importante. Alguém que não fica puxando o saco do chefe. Eu não puxo saco de ninguém. Várias vezes disse ao Lula coisas com que ele não concordava.

Por exemplo?

Por exemplo, quando ele fez a aliança com o Garotinho [ex-governador do Rio, condenado por corrupção]. Eu não votei.


Já agora, Collor de Melo e Sarney [ex-presidentes envolvidos em escândalos, que também fazem parte da base de apoio de Lula]. Sente-se confortável com estas alianças?

Eu não sigo as instruções. Se a aliança for com alguém que considero indecoroso, não voto.

É o caso de Sarney ou Collor?

Collor, sim. Sarney, nem tanto. O Sarney que conheço é o da transição. Na primeira parte do governo fez o que pôde. Depois, degringolou. E nunca mais foi candidato a nada. Acho injusto confundir o Sarney com o Collor. O Collor é uma coisa desqualificada.

Há quem critique programas como o Bolsa Família como a criação de uma rede de dependência do governo, que pode ter o efeito contrário justamente a essa autonomia dos cidadãos. O que acha disto?

Acho que é mentira. O Lula tirou 28 milhões da pobreza. Esses não são mais dependentes da Bolsa Família, porque a Bolsa Família é para os pobres. Esses 28 milhões entraram no mercado de trabalho, são assalariados, ou têm os seus pequenos negócios. O que o Lula fez foi proteger os pobres, não deixar os caras morrer de fome. Mas uma vez que ficaram acima do salário mínimo, não. Ninguém que ganhe acima do salário mínimo tem Bolsa Família. Pode ter outras.

Como economista, como vê estes programas?

Acho que é o correcto. Ao tirar da pobreza, e meter no mercado de trabalho vinte e tantos milhões, você está consolidando o mercado interno. Por isso é que a crise internacional não nos atingiu duramente. Por isso, e porque o sector externo estava bem. Tínhamos pago a dívida externa.

E Lula investiu no consumo…

É, deu crédito, além de ter dado emprego. Deu muito emprego. Mais do que prometeu. Investiu no mercado interno e deu financiamento para aquisição de bens necessários, tipo geladeira [frigorífico]. As pessoas dizem: “Ah, fica financiando geladeira…” Mas neste país quente querem que não se financie geladeira? E as pessoas comem o quê? Carne podre? Evidentemente que o que ele fez está correcto. Passámos de uma taxa de crédito de 20 e tantos por cento para 40 e tantos. O que é bom. Não é como nos países ricos, que era 120, 130, o que deu na catástrofe que deu [crise de 2008]. Aqui não tem alavancagem do crédito. Não tem incumprimento alto, inclusive, ou seja, não pagar a prestação que deve. Os devedores pagam, e quem mais paga são os pobres, exactamente. Essa é outra ideia, que pobre não paga. É mentira. Quem não paga é a classe média-alta, que usa cartão de crédito, cheque especial, vai-se endividando e endividando. O povo não faz isso. Nem tem cartão de crédito nem cheque especial. Tem banco, isso sim. Foi uma coisa importante.
O Lula não fez só o Bolsa Família. Fez O Luz para Todos, fez a Bancarização, que é você ter direito, mesmo sem carteira de trabalho, a poder ir ao banco e ter crédito. Essas coisas que implicam integrar o cidadão na sociedade.

O que é está em jogo nesta eleição, de facto? É uma eleição importante?

É importante. É a continuidade deste esforço em todos os sentidos. Desde a política externa autónoma, que é fundamental. As pessoas não se dão conta, porque aqui ninguém sabe nada de política externa, então a classe média nem fala no assunto.

Uma das críticas maiores ao governo Lula é o facto dele falar no tom em que fala com Chávez, com o regime cubano, com Ahmadinejad.

Isso é tudo uma bobagem, porque tem de falar com todo o mundo. Lula também fala, e é amigo, do presidente dos Estados Unidos. Só que não se submete.

Mas a questão não é falar, é…

É falar sim, porque ele não fez nada que não fosse de acordo com as regras da nossa constituição e as regras internacionais.

A questão que algumas pessoas colocam é se faz sentido um presidente como Lula ir abraçar os irmãos Castro num momento em que estão dissidentes a morrer e a serem mortos.

Faz sentido como faz sentido ir abraçar qualquer um. Então eu pergunto: faz sentido o governo dos Estados Unidos ter sustentado com dinheiro, com apoio da CIA, todos os golpes de Estado da América Latina?! Isso ninguém critica! Aposto que essa gente da classe média nunca falou nos golpes latino-americanos financiados pelos Estados Unidos e pela CIA!

Certo. Mas a pergunta…

Então?! Nós não estamos financiando golpe de Estado! Só estamos indo a governos legítimos. Não estou falando democráticos, estou falando legítimos.

Como alguém que acredita profundamente da democracia não a incomoda…

Não me incomoda nada! O Oriente Médio não tem democracia nenhuma, e não terá tão cedo. Há tanta possibilidade de ter democracia no Irão, no Iraque, naquela república petroleira que sustenta tudo…

A Arábia Saudita. Mas eu não estava a falar do Oriente Médio…

Como não? Uma das críticas maiores foi ele ter falado com o Irão. Como não está falando no Oriente Médio, se foi aí que a imprensa espirrou? O Castro é periódico. Todo o mundo sabe que ele é amigo do Castro de Cuba.

Mas estou a perguntar-lhe a si.

Acho que ele tem todo o direito. Eu também não teria nenhum inconveniente se fosse a Cuba — não tenho nada que fazer lá, de momento, nem tive, no passado — em cumprimentar o velho Castro, imagina, que é uma figura histórica totalmente relevante. Agora de repente o Castro não tem importância nenhuma? Eu teria inconveniente era em cumprimentar o primeiro-ministro da Itália [Berlusconi], esse sim, que é um ladrão.
No caso da Itália, não é só por causa da corrupção. É por causa do neo-fascismo, que Berlusconi promoveu, e de que é aliado. O que está acontecendo na Itália é gravíssimo, voltar o fascismo à Itália como partido legal.


Mas se cumprimentasse Castro, provavelmente também lhe diria o que pensa, não?

Sem dúvida nenhuma. Ia dizer: “Sei que agora não é você quem manda, é o Raul, mas porque é que não libera logo esses caras, e pára de ter uma praga em cima de você?” Eu diria. E ele diria: “Porque não, nhim-nhim-nhim, nhim-nhim-nhim, lá os argumentos dele. Digo sempre o que penso. Nos Estados Unidos também dizia, quando estava lá.


A senhora acha que isso não teve custos políticos para Lula?

Custos políticos não teve, porque as pessoas que dizem isso nunca votaram no Lula.

Há pessoas que votaram nele e dizem isso.

Não senhora. Não é pela política externa. Não é verdade. Podem ter-te dito que votaram, mas é mentira. A política externa [de Lula] não é uma crítica da esquerda. Ao contrário. Isso é uma crítica da direita.


Concentrando-nos na América Latina, a minha questão era se faz sentido uma figura como o Lula, justamente pelo que transporta de inspiração, de exemplo…

Faz todo o sentido! Não é uma política de autonomia? É! Cuba está ou não cercada pelo boicote económico americano? Está. Um dos problemas económicos deles é esse.


Justamente. Uma palavra de Lula aí não teria força em relação à repressão política, dos prisioneiros?

O Lula não se vai meter nas decisões de cada país. Vai lá para mostrar simpatia pelo facto de que eles estão sendo cercados. E deve ter falado [na questão dos presos políticos]. Porque ele disse-me que isso foi tocado.

É?

Mas amigavelmente. Não vai agora se meter na política dos outros. Chama-se política de não intervenção. Ninguém se intromete. Se fosse à Itália provavelmente também cumprimentaria o Berlusconi. Só que não foi, graças a Deus. Acho que é um dos poucos países onde não foi. Não deve ter sido por acaso. Foi à Alemanha, a França, e também não deve morrer de amores pela Merkel, ou por aquele francês, que é um autoritário de direita, o Sarkozy. E daí? Por acaso ele critica o Sarkozy em público, ou vai lá peruar sobre os direitos dos franceses? Isso não se usa. Isso não é diplomacia. Eu faria, mas o Lula é um estadista, representa o estado brasileiro.
Outra coisa com que a direita não concorda é a política Sul-Sul, e é o caso do Serra, que hoje é um homem de direita.

Acha que ele é um homem de direita?

Hoje, virou. Porque o partido dele virou a direita possível. Dado que a direita clássica está encolhendo no Brasil, ele foi-se estendendo para a direita. Então o partido dele hoje, no máximo, pode-se chamar de centro-direita. Como, no máximo, o nosso pode ser chamado de centro-esquerda. Você tem o centro dominando o espectro ideológico. Ora vai para a esquerda, em certas eleições. Ora vai para a direita.


SEÇÃO POLÍTICA: "Carta Aberta à Fernando Henrique Cardoso"


Texto editado na Revista CartaCapital, em 26 de outubro de 2010 às 16:27h

Escrito pelo professor Emérito da Universidade Federal Fluminense, Theotonio dos Santos responde a carta aberta que o Fernando Henrique Cardoso dirigiu ao presidente Lula.

Meu caro Fernando,

Vejo-me na obrigação de responder a carta aberta que você dirigiu ao Lula, em nome de uma velha polêmica que você e o José Serra iniciaram em 1978 contra o Rui Mauro Marini, eu, André Gunder Frank e Vânia Bambirra, rompendo com um esforço teórico comum que iniciamos no Chile na segunda metade dos nos 1960. A discussão agora não é entre os cientistas sociais e sim a partir de uma experiência política que reflete comtudo este debate teórico. Esta carta assiada por você como ex-presidente é uma defesa muito frágil teórica e politicamente de sua gestão. Quem a lê não pode compreender porque você saiu do governo com 23% de aprovação enquanto Lula deixa o seu governo com 96% de aprovação. Já discutimos em várias oportunidades os mitos que se criaram em torno dos chamados êxitos do seu governo. Já no seu governo vários estudiosos discutimos, já no começo do seu governo, o inevitável caminho de seu fracasso junto à maioria da população. Pois as premissas teóricas em que baseava sua ação política eram profundamente equivocadas e contraditórias com os interesses da maioria da população. (Se os leitores têm interesse de conhecer o debate sobre estas bases teóricas lhe recomendo meu livro já esgotado: Teoria da Dependencia: Balanço e Perspectivas, Editora Civilização Brasileira, Rio, 2000).

Contudo nesta oportunidade me cabe concentrar-me nos mitos criados em torno do seu governo, os quais você repete exaustivamente nesta carta aberta.

O primeiro mito é de que seu governo foi um êxito econômico a partir do fortalecimento do real e que o governo Lula estaria apoiado neste êxito alcançando assim resultados positivos que não quer compartir com você… Em primeiro lugar vamos desmitificar a afirmação de que foi o plano real que acabou com a inflação. Os dados mostram que até 1993 a economia mundial vivia uma hiperinflação na qual todas as economias apresentavam inflações superiores a 10%. A partir de 1994, TODAS AS ECONOMIAS DO MUNDO APRESENTARAM UMA QUEDA DA INFLAÇÃO PARA MENOS DE 10%. Claro que em cada pais apareceram os “gênios” locais que se apresentaram como os autores desta queda. Mas isto é falso: tratava-se de um movimento planetário.

No caso brasileiro, a nossa inflação girou, durante todo seu governo, próxima dos 10% mais altos. TIVEMOS NO SEU GOVERNO UMA DAS MAIS ALTAS INFLAÇÕES DO MUNDO. E aqui chegamos no outro mito incrível. Segundo você e seus seguidores (e até setores de oposição ao seu governo que acreditam neste mito) sua política econômica assegurou a transformação do real numa moeda forte. Ora Fernando, sejamos cordatos: chamar uma moeda que começou em 1994 valendo 0,85 centavos por dólar e mantendo um valor falso até 1998, quando o próprio FMI exigia uma desvalorização de pelo menos uns 40% e o seu ministro da economia recusou-se a realizá-la “pelo menos até as eleições”, indicando assim a época em que esta desvalorização viria e quando os capitais estrangeiros deveriam sair do país antes de sua desvalorização, O fato é que quando você flexibilizou o cambio o real se desvalorizou chegando até a 4,00 reais por dólar. E não venha por a culpa da “ameaça petista” pois esta desvalorização ocorreu muito antes da “ameaça Lula”. ORA, UMA MOEDA QUE SE DESVALORIZA 4 VEZES EM 8 ANOS PODE SER CONSIDERADA UMA MOEDA FORTE? Em que manual de economia? Que economista respeitável sustenta esta tese?

Conclusões: O plano real não derrubou a inflação e sim uma deflação mundial que fez cair as inflações no mundo inteiro. A inflação brasileira continuou sendo uma das maiores do mundo durante o seu governo. O real foi uma moeda drasticamente debilitada. Isto é evidente: quando nossa inflação esteve acima da inflação mundial por vários anos, nossa moeda tinha que ser altamente desvalorizada. De maneira suicida ela foi mantida artificialmente com um alto valor que levou à crise brutal de 1999.

Segundo mito; Segundo você, o seu governo foi um exemplo de rigor fiscal. Meu Deus: um governo que elevou a dívida pública do Brasil de uns 60 bilhões de reais em 1994 para mais de 850 bilhões de dólares quando entregou o governo ao Lula, oito anos depois, é um exemplo de rigor fiscal? Gostaria de saber que economista poderia sustentar esta tese. Isto é um dos casos mais sérios de irresponsabilidade fiscal em toda a história da humanidade.

E não adianta atribuir este endividamento colossal aos chamados “esqueletos” das dívidas dos estados, como o fez seu ministro de economia burlando a boa fé daqueles que preferiam não enfrentar a triste realidade de seu governo. UM GOVERNO QUE CHEGOU A PAGAR 50% AO ANO DE JUROS POR SEUS TÍTULOS, PARA EM SEGUIDA DEPOSITAR OS INVESTIMENTOS VINDOS DO EXTERIOR EM MOEDA FORTE A JUROS NORMAIS DE 3 A 4%, NÃO PODE FUGIR DO FATO DE QUE CRIOU UMA DÍVIDA COLOSSAL SÓ PARA ATRAIR CAPITAIS DO EXTERIOR PARA COBRIR OS DÉFICITS COMERCIAIS COLOSSAIS GERADOS POR UMA MOEDA SOBREVALORIZADA QUE IMPEDIA A EXPORTAÇÃO, AGRAVADA AINDA MAIS PELOS JUROS ABSURDOS QUE PAGAVA PARA COBRIR O DÉFICIT QUE GERAVA. Este nível de irresponsabilidade cambial se transforma em irresponsabilidade fiscal que o povo brasileiro pagou sob a forma de uma queda da renda de cada brasileiro pobre. Nem falar da brutal concentração de renda que esta política agravou dráticamente neste pais da maior concentração de renda no mundo. VERGONHA FERNANDO. MUITA VERGONHA. Baixa a cabeça e entenda porque nem seus companheiros de partido querem se identifica com o seu governo…te obrigando a sair sozinho nesta tarefa insana.

Terceiro mito – Segundo você, o Brasil tinha dificuldade de pagar sua dívida externa por causa da ameaça de um caos econômico que se esperava do governo Lula. Fernando, não brinca com a compreensão das pessoas. Em 1999 o Brasil tinha chegado à drástica situação de ter perdido TODAS AS SUAS DIVISAS. Você teve que pedir ajuda ao seu amigo Clinton que colocou à sua disposição ns 20 bilhões de dólares do tesouro dos Estados Unidos e mais uns 25 BILHÕES DE DÓLARES DO FMI, Banco Mundial e BID. Tudo isto sem nenhuma garantia.

Esperava-se aumentar as exportações do pais para gerar divisas para pagar esta dívida. O fracasso do setor exportador brasileiro mesmo com a espetacular desvalorização do real não permitiu juntar nenhum recurso em dólar para pagar a dívida. Não tem nada a ver com a ameaça de Lula. A ameaça de Lula existiu exatamente em conseqüência deste fracasso colossal de sua política macro-econômica. Sua política externa submissa aos interesses norte-americanos, apesar de algumas declarações críticas, ligava nossas exportações a uma economia decadente e um mercado já copado. A recusa dos seus neoliberais de promover uma política industrial na qual o Estado apoiava e orientava nossas exportações. A loucura do endividamento interno colossal. A impossibilidade de realizar inversões públicas apesar dos enormes recursos obtidos com a venda de uns 100 bilhões de dólares de empresas brasileiras. Os juros mais altos do mundo que inviabilizava e ainda inviabiliza a competitividade de qualquer empresa. Enfim, UM FRACASSO ECONOMICO ROTUNDO que se traduzia nos mais altos índices de risco do mundo, mesmo tratando-se de avaliadoras amigas. Uma dívida sem dinheiro para pagar… Fernando, o Lula não era ameaça de caos. Você era o caos. E o povo brasileiro correu tranquilamente o risco de eleger um torneiro mecânico e um partido de agitadores, segundo a avaliação de vocês, do que continuar a aventura econômica que você e seu partido criou para este pais.

Gostaria de destacar a qualidade do seu governo em algum campo mas não posso faze-lo nem no campo cultural para o qual foi chamado o nosso querido Francisco Weffort (neste então secretário geral do PT) e não criou um só museu, uma só campanha significativa. Que vergonha foi a comemoração dos 500 anos da “descoberta do Brasil”. E no plano educacional onde você não criou uma só universidade e entou em choque com a maioria dos professores universitários sucateados em seus salários e em seu prestígio profissional. Não Fernando, não posso reconhecer nada que não pudesse ser feito por um medíocre presidente.

Lamento muito o destino do Serra. Se ele não ganhar esta eleição vai ficar sem mandato, mas esta é a política. Vocês vão ter que revisar profundamente esta tentativa de encerrar a Era Vargas com a qual se identifica tão fortemente nosso povo. E terão que pensar que o capitalismo dependente que São Paulo construiu não é o que o povo brasileiro quer. E por mais que vocês tenham alcançado o domínio da imprensa brasileira, devido suas alianças internacionais e nacionais, está claro que isto não poderia assegurar ao PSDB um governo querido pelo nosso povo. Vocês vão ficar na nossa história com um episódio de reação contra o vedadeiro progresso que Dilma nos promete aprofundar. Ela nos disse que a luta contra a desigualdade é o verdadeiro fundamento de uma política progressista. E dessa política vocês estão fora.

Apesar de tudo isto, me dá pena colocar em choque tão radical uma velha amizade. Apesar deste caminho tão equivocado, eu ainda gosto de vocês ( e tenho a melhor recordação de Ruth) mas quero vocês longe do poder no Brasil. Como a grande maioria do povo brasileiro. Poderemos bater um papo inocente em algum congresso internacional se é que vocês algum dia voltarão a freqüentar este mundo dos intelectuais afastados das lides do poder.

Com a melhor disposição possível mas com amor à verdade, me despeço

Theotonio Dos Santos

Theotonio Dos Santos é Professor Emérito da Universidade Federal Fluminense, Presidente da Cátedra da UNESCO e da Universidade das Nações Unidas sobre economia global e desenvolvimentos sustentável. Professor visitante nacional sênior da Universidade Federal do Rio de Janeiro.